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Regressei recentemente às obras
de Primo Levi. Finalmente reuni coragem para ler “Se Isto é um Homem” talvez a
sua obra mais crua, onde em cada frase nos deparamos com um confronto entre
humanismo e terror. A palavra Auschwitz surge em muitos títulos recentes,
alguns que tentam até suavizar o horror, mas foi esta a grande obra que nos deu
a conhecer a realidade do campo de extermínio nazi.
É difícil, podendo até ser perigoso,
eleger uma única passagem da obra. Mas quero partilhar um parágrafo referente à
última noite que Primo Levi e outros judeus passaram no campo fascista italiano
de Fóssoli, antes de serem carregados nos vagões que os conduziram até à
Polónia:
“Cada um despediu-se da vida da forma que lhe era mais própria. Alguns
rezaram, outros beberam para além do normal, outros inebriaram-se com a última
nefanda paixão. Mas as mães ficaram acordadas para preparar com amoroso cuidado
a comida para a viagem, e lavaram os filhos, e fizeram as malas, e de madrugada
os arames farpados estavam cheios de roupas de criança estendidas a secar ao
vento; e não se esqueceram das fraldas, dos brinquedos, das almofadas e das cem
pequenas coisas que elas bem conhecem, e das quais os filhos sempre precisam.
Não fariam também o mesmo? Se amanhã esperassem ser mortos com o vosso filho,
não lhe dariam hoje de comer?”
Talvez pela minha condição de mãe,
e por sentir uma vida a crescer dentro de mim, me tenha sensibilizado particularmente
com esta passagem. As obras de Primo Levi estão carregadas desta mestria: a
capacidade de nos transportarem para o lugar do outro. E é impossível ler este
livro sem nos revoltarmos com quem permitiu estes acontecimentos: os medíocres,
de que nos falou Hanna Arendt, mas também aqueles que se calaram, aqueles que
vendo emergir as forças fascistas não resistiram.
Um dia também nós seremos
julgados pelas gerações futuras. Será julgado o silêncio a que nos habituámos e
que consente a existência de campos de refugiados, o silêncio que permite a
perseguição de estrangeiros e a sua morte, que permite o aumento das
desigualdades, a perseguição das diferenças e a condenação dos pobres.
Faço aqui um paralelismo com a
situação política atual. Não porque haja comparação em termos de dimensão mas
porque o que nos define como humanidade está em causa agora como esteve no
início do século XX.
Ontem (24/01/21) uma conhecida
que votou em André Ventura perguntou-me porque é que a esquerda se preocupava
tanto com o crescimento deste fenómeno. Alegou que os antidemocratas são os que
se insurgem contra um voto nesta força destabilizadora. Mas não é esta uma
preocupação de qualquer pessoa com valores humanistas? Se nos calarmos seremos
um dia julgados por compactuarmos com o ódio. O mesmo ódio que está a alimentar
forças idênticas por todo o mundo. Por outro lado, a democracia não se resume à
liberdade de escolha nas urnas. O fenómeno Chega é uma ameaça à democracia por
si só, não pela representação parlamentar que me parece que não vai crescer
muito, mas pelas ideias que dissemina na sociedade. Não existe democracia sem
respeito pelos direitos humanos. Em cada discurso de ódio que é legitimado há
pelo menos uma vida que se sente ameaçada. E votar em André Ventura é um ato de
legitimação do ódio. Não podemos permitir que uma família de etnia cigana,
negros, estrangeiros, homossexuais, mulheres, pobres sintam a sua vida em risco cada vez que
palavras de insulto são aplaudidas. Se perguntarmos aos cerca de 500 mil
portugueses que votaram nele porque o fizeram, estou certa que não haverá
nenhuma ideia comum, nem em termos económicos nem na tentativa de romper
seriamente com o sistema. Há, sim, um sentimento comum, o ódio que é muitas
vezes confundido com revolta.
Vejamos o que aconteceu na
invasão ao Capitólio incitada por Trump. O que queria aquela multidão? Qual foi
o verdadeiro fundamento de tudo aquilo? Não conseguimos encontrar nada em comum
a não ser a disseminação do medo, tal como as imagens revoltantes de vários
homens brancos a agredir uma mulher negra nos mostraram. Será esta violência e
impunidade que queremos que cresça em todo o mundo? Será este o legado que
queremos deixar para as gerações futuras?
Voltando à obra de Primo Levi.
Com as envolventes descrições do autor, conseguimos facilmente perceber que
aqueles homens e mulheres foram convertidos num espectro humano e desta forma
toda a sociedade passou a olhá-los com repúdio ou indiferença. Quando somos
confrontados com a debilidade humana é natural que surjam sentimentos
primitivos, como repulsa, asco, medo e violência. Odiamos o que não queremos
ser. É por isso muito fácil manipular os instintos que nos surgem quando somos
confrontados com a pobreza extrema, as desigualdades e as minorias. A empatia
só surge após uma reflexão consciente. É da manipulação dos sentimentos e
emoções mais básicos que estas forças extremistas se alimentam.
Nós, eleitores, somos tratados
como consumidores e chamados a votar por campanhas de marketing. O mesmo
marketing que serve de base para os anúncios de automóveis na televisão. O
neuromarketing debruça-se sobre estudos científicos que estudam o cérebro, o
comportamento, as emoções para evoluir. Na grande maioria das campanhas não se
debatem seriamente ideias, manipulam-se emoções. E quanto mais a ideologia
perde terreno maior é a nossa vulnerabilidade. É urgente resgatar o debate
ideológico e negar as campanhas sensacionalistas que pescam o voto rápido.
Temos pela frente um caminho
árduo, que será agudizado por esta crise económica, ecológica e sanitária. É
por isso que se torna urgente uma reconfiguração de políticas sociais na Europa
que nos protejam. Tal como no pós-guerra o Estado-providência foi a resposta
encontrada para reerguer a Europa não soviética, é chegado o momento de encontrar
uma solução para que o rancor que coloca pobres contra pobres não nos vença.
Precisamos de recordar a História
mundial e a do nosso país. Relembrar aos eleitores que agora aplaudem as
perseguições, que eram eles os perseguidos de há poucas décadas. Os que
roubavam laranjas por fome, os que arriscavam levar o gado a pastos proibidos,
os que faziam contrabando para alimentar os filhos, os que fugiam para França
na tentativa de deixar a miséria para trás.
É hora de escrevermos a História futura,
uma realidade da qual os nossos filhos se orgulhem, onde ninguém é perseguido,
onde todos tenham lugar.