domingo, 19 de fevereiro de 2023

Teoria da Dor Relativa

 

Pensei a dor como relativa

Somada ou subtraída

A aumentar ou diminuir

Os valores inerciais iniciais.


Ouvi falar de uma constante.

Certa que seria o amor,

O éter procurado,

Apliquei expoentes sem limites

Aos afetos da minha esfera. 


Estava quase a abandonar 

a teoria da dor relativa

Quando percebi que a constante 

É desprezável 

Apenas para referências pequenas,

Demasiado pequenas,

Perante essa dor que é constante

E tudo torna possível: 

A Existência! 

domingo, 6 de novembro de 2022

Escalar ou aterrar de paraquedas?

Quando em 2015 criei a Ombros de Gigante construí num projeto um molde que pretendia dar forma a vários sonhos. Encontrei o meu espaço como trabalhadora, onde me sinto segura e realizada. Onde me reconheço competente e com um apetite insaciável de melhoria contínua.

Divulgar ou partilhar conteúdos científicos é sobretudo uma tentativa de melhorar a sociedade. Compreender o mundo torna-nos pessoas mais humildes, dá-nos uma visão de fragilidade e ao mesmo tempo de igualdade. Questionar o que nos rodeia dá-nos ferramentas de proteção contra as imposições e os dogmas.

Encontrei neste trabalho uma forma pura de intervenção social. E mais do que qualquer teoria de sucesso escolar ou promessas de futuros prodigiosos há uma valorização das crianças e dos alunos crucial neste trabalho. De cada vez que entrei numa sala de aula ou participei numa ação, partilhei instantes de felicidade com os mais novos.
Aprender de uma forma lúdica ajuda a compreender conceitos, aparentemente difíceis, em etapas de ensino mais precoces. Dar hipótese de questionar, criar, observar, experimentar e explorar dá autonomia e confiança aos alunos. Poder fazê-lo através de ferramentas que fogem às barreiras do ensino convencional é uma forma de valorizar o sistema e não de o descredibilizar ou substituir.

Mas sempre soube que chegar aos Ombros de Gigantes representa uma difícil escalada para a maioria e uma divertida descida de paraquedas para alguns. Não no sentido de diferença de capacidades cognitivas ou de aprendizagem, mas na desigualdade de oportunidades. Numa social desigual os pontos de partida obrigam a percursos mais difíceis ou permitem caminhos facilitados.

E foi nesta barreira de desigualdade que a Ombros de Gigante travou. A total falta de apoios, a escassez das verbas obrigou-me a repensar o meu trabalho.

E eis que me surge a oportunidade de ingressar num Centro de Ciência Viva, onde encontrei uma filosofia de trabalho muito próxima do que defendo, onde me senti feliz e enquadrada mas onde me deparei com outras dificuldades de equilíbrio familiar e de remuneração. Optei pela mudança para outro Centro de Ciência Viva, assumindo as consequências de voltar à precariedade. Nesta rede tenho encontrado qualidade e um patamar de oportunidades incomparável. Mas o que parecia ser uma solução para o meu percurso profissional apresenta-se ao mesmo tempo como um estrangulamento. Um estrangulamento porque neste trabalho não existe uma carreira regulamentada.

A Ciência Viva é pautada por princípios nobres e o lema de "Ciência para todos" enquadra tudo aquilo em que acredito na área de divulgação. Mas esse patamar nunca será possível enquanto na base do trabalho que é desenvolvido estão trabalhadores sem vínculo, falsos recibos verdes ou trabalhadores qualificados muito mal remunerados.

O sistema de ensino e a sociedade em geral podem beneficiar muito dos acordos entre o governo e a Rede de Centros de Ciência Viva. A criação dos clubes, as diversas exposições a nível nacional, as atividades de excelência que são desenvolvidas nos Centros são veículos promissores. No entanto, para que o trabalho seja efetivo, contínuo e de qualidade é necessário cuidar da base que o executa e desenvolve.
 

Precisamos encontrar um enquadramento para a carreira de divulgador de ciência. Tal como precisamos de uma união entre os trabalhadores que o desenvolvem.

Neste percurso encontrei profissionais muito dedicados e apaixonados e não vou desistir de encontrar a valorização do seu/nosso trabalho. Por uma sociedade mais informada, mais inclusiva e mais justa.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Se isto é Humanismo

Galerie Bilderwelt / Getty Images
 

 

Regressei recentemente às obras de Primo Levi. Finalmente reuni coragem para ler “Se Isto é um Homem” talvez a sua obra mais crua, onde em cada frase nos deparamos com um confronto entre humanismo e terror. A palavra Auschwitz surge em muitos títulos recentes, alguns que tentam até suavizar o horror, mas foi esta a grande obra que nos deu a conhecer a realidade do campo de extermínio nazi.

É difícil, podendo até ser perigoso, eleger uma única passagem da obra. Mas quero partilhar um parágrafo referente à última noite que Primo Levi e outros judeus passaram no campo fascista italiano de Fóssoli, antes de serem carregados nos vagões que os conduziram até à Polónia:

“Cada um despediu-se da vida da forma que lhe era mais própria. Alguns rezaram, outros beberam para além do normal, outros inebriaram-se com a última nefanda paixão. Mas as mães ficaram acordadas para preparar com amoroso cuidado a comida para a viagem, e lavaram os filhos, e fizeram as malas, e de madrugada os arames farpados estavam cheios de roupas de criança estendidas a secar ao vento; e não se esqueceram das fraldas, dos brinquedos, das almofadas e das cem pequenas coisas que elas bem conhecem, e das quais os filhos sempre precisam. Não fariam também o mesmo? Se amanhã esperassem ser mortos com o vosso filho, não lhe dariam hoje de comer?”

Talvez pela minha condição de mãe, e por sentir uma vida a crescer dentro de mim, me tenha sensibilizado particularmente com esta passagem. As obras de Primo Levi estão carregadas desta mestria: a capacidade de nos transportarem para o lugar do outro. E é impossível ler este livro sem nos revoltarmos com quem permitiu estes acontecimentos: os medíocres, de que nos falou Hanna Arendt, mas também aqueles que se calaram, aqueles que vendo emergir as forças fascistas não resistiram.

Um dia também nós seremos julgados pelas gerações futuras. Será julgado o silêncio a que nos habituámos e que consente a existência de campos de refugiados, o silêncio que permite a perseguição de estrangeiros e a sua morte, que permite o aumento das desigualdades, a perseguição das diferenças e a condenação dos pobres.

Faço aqui um paralelismo com a situação política atual. Não porque haja comparação em termos de dimensão mas porque o que nos define como humanidade está em causa agora como esteve no início do século XX.

Ontem (24/01/21) uma conhecida que votou em André Ventura perguntou-me porque é que a esquerda se preocupava tanto com o crescimento deste fenómeno. Alegou que os antidemocratas são os que se insurgem contra um voto nesta força destabilizadora. Mas não é esta uma preocupação de qualquer pessoa com valores humanistas? Se nos calarmos seremos um dia julgados por compactuarmos com o ódio. O mesmo ódio que está a alimentar forças idênticas por todo o mundo. Por outro lado, a democracia não se resume à liberdade de escolha nas urnas. O fenómeno Chega é uma ameaça à democracia por si só, não pela representação parlamentar que me parece que não vai crescer muito, mas pelas ideias que dissemina na sociedade. Não existe democracia sem respeito pelos direitos humanos. Em cada discurso de ódio que é legitimado há pelo menos uma vida que se sente ameaçada. E votar em André Ventura é um ato de legitimação do ódio. Não podemos permitir que uma família de etnia cigana, negros, estrangeiros, homossexuais, mulheres, pobres sintam a sua vida em risco cada vez que palavras de insulto são aplaudidas. Se perguntarmos aos cerca de 500 mil portugueses que votaram nele porque o fizeram, estou certa que não haverá nenhuma ideia comum, nem em termos económicos nem na tentativa de romper seriamente com o sistema. Há, sim, um sentimento comum, o ódio que é muitas vezes confundido com revolta.

Vejamos o que aconteceu na invasão ao Capitólio incitada por Trump. O que queria aquela multidão? Qual foi o verdadeiro fundamento de tudo aquilo? Não conseguimos encontrar nada em comum a não ser a disseminação do medo, tal como as imagens revoltantes de vários homens brancos a agredir uma mulher negra nos mostraram. Será esta violência e impunidade que queremos que cresça em todo o mundo? Será este o legado que queremos deixar para as gerações futuras?

Voltando à obra de Primo Levi. Com as envolventes descrições do autor, conseguimos facilmente perceber que aqueles homens e mulheres foram convertidos num espectro humano e desta forma toda a sociedade passou a olhá-los com repúdio ou indiferença. Quando somos confrontados com a debilidade humana é natural que surjam sentimentos primitivos, como repulsa, asco, medo e violência. Odiamos o que não queremos ser. É por isso muito fácil manipular os instintos que nos surgem quando somos confrontados com a pobreza extrema, as desigualdades e as minorias. A empatia só surge após uma reflexão consciente. É da manipulação dos sentimentos e emoções mais básicos que estas forças extremistas se alimentam.

Nós, eleitores, somos tratados como consumidores e chamados a votar por campanhas de marketing. O mesmo marketing que serve de base para os anúncios de automóveis na televisão. O neuromarketing debruça-se sobre estudos científicos que estudam o cérebro, o comportamento, as emoções para evoluir. Na grande maioria das campanhas não se debatem seriamente ideias, manipulam-se emoções. E quanto mais a ideologia perde terreno maior é a nossa vulnerabilidade. É urgente resgatar o debate ideológico e negar as campanhas sensacionalistas que pescam o voto rápido.

Temos pela frente um caminho árduo, que será agudizado por esta crise económica, ecológica e sanitária. É por isso que se torna urgente uma reconfiguração de políticas sociais na Europa que nos protejam. Tal como no pós-guerra o Estado-providência foi a resposta encontrada para reerguer a Europa não soviética, é chegado o momento de encontrar uma solução para que o rancor que coloca pobres contra pobres não nos vença.

Precisamos de recordar a História mundial e a do nosso país. Relembrar aos eleitores que agora aplaudem as perseguições, que eram eles os perseguidos de há poucas décadas. Os que roubavam laranjas por fome, os que arriscavam levar o gado a pastos proibidos, os que faziam contrabando para alimentar os filhos, os que fugiam para França na tentativa de deixar a miséria para trás.

É hora de escrevermos a História futura, uma realidade da qual os nossos filhos se orgulhem, onde ninguém é perseguido, onde todos tenham lugar.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Sentidos


A menina abriu os braços
Que o vento em asas transformou
E num instante imediato
Através de um sorriso atrevido
O seu primeiro voo iniciou

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Perspectivas


Ontem ouvi o Pedro Lamares na RTP2 recitar o poema VII do Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro. De imediato pensei no que mais caracteriza a vista da minha pequena varanda nas últimas semanas: um pátio de escola vazio, o verde das árvores que, ao renascerem nesta primavera, parecem contrariar a paragem das nossas vidas e um conjunto de cimento do prédio mais alto da cidade. Pela distância a que se encontra, consigo ver o topo dessa construção tão feia quanto sólida, é a Segurança Social que querem colocar em gabinetes e muitos papéis. A segurança social que me impõe este isolamento é outra, menos burocrática e mais solidária.
Pensei então que a pequenez que me invade durante estes dias pode ser fruto desta vista confinada. Não posso avistar o mar, nem as montanhas. No instante em que assim penso sinto-me mais pequena do que o meu metro e meio de altura.
Horas depois, um novo dia. A minha filha acorda devagar ao meu lado, ela gosta de saborear a preguiça matinal. Aconchegada a ela não penso em nada e de repente reparo na sua pequena mão sobre a minha. Acaricia-me vagarosamente com o mesmo vagar que os dias levam agora a passar. Aquele pormenor que vejo e sinto é tão grande quanto o rio da aldeia de Alberto Caeiro. Talvez a nossa grandeza não esteja somente no tamanho daquilo que avistamos mas também no quanto conseguimos observar.
Vem-me outra frase à memória: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. A citação da contracapa do livro Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago. Livro que muitos de nós com certeza já recordámos nos tempos de pandemia que vivemos.
Percebo que passo os meus dias de isolamento alternando entre atentar no que vejo e fechar propositadamente os olhos. Mais do que nunca o meu pensamento é uma dicotomia constante. Quando tudo começou pensei que este seria o tempo de o sistema reforçar os serviços públicos, de percebermos que somos uma espécie altruísta e como tal não faz sentido subjugar a classe trabalhadora aos caprichos de meia dúzia de predadores. Mas as notícias que nos chegam aumentam os contrastes e percebo que os predadores serão os primeiros a ser ajudados. Por outro lado, admiro os pequenos comerciantes, as pequenas empresas que bracejam apesar do cansaço para manterem os seus trabalhadores. Vejo um esforço sobrenatural destes pequenos (e verdadeiros) empreendedores para seguirem as recomendações das autoridades de saúde e ao mesmo tempo não se afundarem num fosso económico. Admiro os trabalhadores que não sabem se vão ter salário ao fim do mês, ou aqueles que ficaram sem ele, e mesmo assim querem acreditar que vai ficar tudo bem. Este é o momento de vermos e repararmos que o nosso mundo (e principalmente a realidade social de Portugal) não se divide entre “patrões” e empregados. Divide-se sim entre quem depende do esforço do seu trabalho para sobreviver dignamente e os que especulam com as nossas vidas. É o momento da unidade entre os primeiros se fazer notar. Logo de seguida penso que talvez não seja esta a solução que vamos encontrar, provavelmente depois da pandemia muitos dos pequenos “patrões” não vão resistir, podemos perder a proximidade do pequeno restaurante, das pessoas que todos os dias nos servem o café com um sorriso, o colorido do quiosque onde compramos o jornal. Muito provavelmente o desemprego vai aumentar exponencialmente tal como aconteceu com os infectados. As dúvidas são imensas e aterrorizam-nos.
Ontem uma amiga perguntava-me, verdadeiramente preocupada, como vai ficar a minha situação económica. Como trabalhadora independente ligada à educação, a partir do próximo mês não terei qualquer remuneração e não sei quanto tempo isto vai durar. Por outro lado, sei que quando voltar ao ativo vou ter outra vez diante de mim dezenas de olhares brilhantes e sedentos de conhecimento. Isso é suficiente para me manter esperançosa.
Sinto-me insignificante ao escrever sobre mim nestes tempos dolorosos, afinal não me pertence o sofrimento daqueles que se encontram doentes, dos seus familiares, dos que perdem alguém querido e não se podem despedir, não me pertence o desespero dos profissionais de saúde e estou muito longe dos corpos empilhados em câmaras frigoríficas. Sinto-me insignificante ao escrever sobre o que sinto e sobre o meu dia-a-dia privilegiado quando nada sei sobre os refugiados presos em campos cada vez mais perigosos, sobre as famílias divididas pela pandemia ou pela guerra. O pouco conhecimento que me chega apenas serve para aumentar as dúvidas sobre este novo mundo que corre e não sabemos onde vai desaguar. E aqui reside mais uma dicotomia: deambulo pelos pensamentos aparentemente insignificantes e contraditórios com a certeza que este é um exercício cívico que se impõe.
O mais importante é que cada um de nós encontre uma forma de se manter mentalmente saudável e, obviamente, a sanidade passa por não nos alienarmos da realidade ao mesmo tempo que observamos o que nos é possível através de cada uma das nossas janelas. É por isso que escrevo sobre o meu pensamento deambulante, afinal isto também é sobre mim, sobre todos nós. Cada um de nós tem agora um papel relevante a desempenhar para evitar a rutura do SNS e um papel, mais importante ainda, na reconstrução do novo mundo que se avizinha. Para que isso seja possível temos de nos manter conscientes independentemente de abrir ou fecharmos os olhos. Encontremos as nossas estratégias.
Temos todas as escolhas em aberto. Conforme somos capazes de nos manter isolados, num admirável respeito pelo o outro, pelo bem colectivo, também somos capazes de nos unir para dar prioridade à vida ao invés da usurpação da banca. A vista que teremos a partir da nossa aldeia vai depender da nossa capacidade de ação enquanto coletivo. Um sistema baseado em especulação e lucro fácil permitirá novas pandemias, matará muitos mais seres vivos por falta de recursos. A solidariedade que a nossa espécie precisa não é de uma invenção assente em linhas de crédito. O nosso altruísmo não se mede em spreads e o nosso esforço não tem uma taxa criada em folha de excel. Somos trabalhadores, somos seres humanos e enquanto seres vivos temos de reclamar um novo mundo com um futuro possível. Porque nós conseguimos ver e reparar. A nossa vista alcança muito mais do que a imagem virtual de qualquer predador, que não consegue mais do que se ver ao espelho.
Esta é a hora de escolher. Entre todas as dicotomias eu escolho a poesia.

sábado, 7 de março de 2020

Na primeira pessoa

A memória já não me permite descrever o espaço com exatidão mas não esqueço os cheiros que o calor intensificava, o odor da urina dos acamados e o suor das visitas amontoadas no corredor. De vez em quando passava uma enfermeira que levava consigo álcool etílico ou éter. Esse breve aroma anestesiava por instantes a indisposição que eu sentia. Talvez por essa razão viria a sentir-me bem por entre a maior parte dos cheiros de um laboratório químico.
O meu avô tinha dado entrada no hospital no dia anterior, foi-lhe diagnosticada uma leucemia fulminante, palavras que uma criança de doze anos não consegue descodificar. Mas quando penso nessa visita não é do meu avô que me recordo mas sim de uma maca tapada com um lençol branco. Por baixo, a silhueta inequívoca de um corpo. Um corpo morto que fazia sala na hora da visita. Seria esta uma lição de respeito pela vida ou simplesmente uma marca da indiferença perante a morte?
Nunca soube se o meu avô notou a presença daquela maca. Sei, apenas, que passados poucos dias ele implorou ao meu irmão (onze anos mais velho do que eu, o seu neto mais velho) que o tirasse daquele hospital. Não me deixes morrer aqui, disse-lhe. O meu irmão sempre ágil na ação obedeceu à vontade do nosso avô paterno e conseguiu levá-lo para casa.
Pautada por uma educação católica, não compreendi na época a situação, questionava-me se ele não devia ficar no hospital, ser cuidado para vencer uma doença invencível ou
simplesmente prolongar a sua estadia nas nossas vidas?!
Felizmente houve quem respeitasse o Homem que ali estava, consciente da sua vontade, e não deixasse que o egoísmo ou a demanda do espírito de sacrifício se sobrepusesse ao ato de amor e de respeito que lhe devíamos.
O meu avô veio para casa por um brevíssimo instante. E é nos mais breves momentos que
encontramos o que queremos eternizar. Eternizo a única vez que lhe dei a mão. Sentada ao seu lado no sofá, envergonhadamente aproximei a minha pequena mão do seu corpo
debilitado, ele agarrou-me os dedos e permanecemos em silêncio. Foi o gesto mais íntimo que partilhámos. No dia seguinte morreu rodeado de alguns netos e filhos.
 
Vinte e tal anos mais tarde recebi uma mensagem de uma grande amiga. Pedia a todos que compreendessem a sua decisão, não aguentava mais os tratamentos, as dores agonizantes, a certeza que percorria um difícil caminho cuja única saída era a morte. Quero paz, disse-nos. Desta vez, abandonados os princípios moralistas da religião, deixei que o egoísmo vencesse por instantes. Queria pedir-lhe para lutar, resistir, ficar connosco por mais tempo.
Guardo mais uma memória de um corredor, desta vez vazio, silencioso. Caminhei a medo até ao seu quarto. Abri a porta e vi um corpo magro, incrivelmente magro, parte de um rosto tapado que deixava adivinhar um sorriso. Os olhos pintados, mais verdes do que nunca, diziam-me que a sua vontade devia ser respeitada. Sei que iria mais além, se a lei o tivesse permitido, mas conseguiu um lugar onde a trataram com respeito. Onde lhe cuidavam do cabelo e lhe pintavam os olhos. Foi naquele olhar delineado que encontrei a maior dignidade de uma Vida.
Acabou por pedir para ser sedada até todos os seus tecidos entrarem em falência.
 
Eles (o meu avô e a M.A.) ensinaram-me, mais do que qualquer outra pessoa, que não é possível amar sem respeitar. Respeitar um ser humano é respeitar as suas decisões sobre a sua vida e a sua morte. A nossa morte pertence-nos como cada instante da nossa vida, não há coletivo ou lei que se possa sobrepor a isso. É na primeira pessoa, consciente da sua decisão, que as decisões mais importantes devem ser tomadas.

(artigo escrito para a Aveiro Mag)

Teoria da Dor Relativa

  Pensei a dor como relativa S omada ou subtraída A aumentar ou diminuir Os valores inerciais iniciais. Ouvi falar de uma constante. Certa q...