Muitas pessoas se insurgiram
contra a exposição da fotografia da família de El Salvador morta a tentar
atravessar o rio Grande. Compreendo que não queiram ver a crueldade de um mundo
onde se tratam vidas como peças de um grande jogo de monopólio. A obsessão pelo
poder, quer seja para controlar um gangue em El Salvador quer seja para
controlar um país como os EUA, é uma patologia cada vez mais mortífera e
contaminante.
Compreendo que as pessoas
classifiquem a fotografia como chocante, é um sinal que alguma empatia ainda
resta dentro de nós. Eu não consigo deixar de olhar a imagem e imaginar o meu
marido e a minha filha ali. Mas esta imagem é necessária, é crucial! Ela é
crucial para nos avivar os genes da empatia, para nos recordar que isto
acontece num mundo cada vez mais tecnológico, cada vez mais informado e devia
ser suficiente para nos insurgirmos contra toda esta desumanização! Mas o problema
é que esta imagem será sucedida de outra e isso basta para nos distrair e
deixarmos a indignação de lado. Lembro por exemplo a fotografia da criança
afogada no mediterrâneo mas não sou capaz de recordar o seu nome. Convivemos
com a barbárie tal como nos rimos com os disparates dos loucos que nos governam.
Achamos tudo isto normal! E o que podemos nós fazer, afinal?!
Podemos talvez recordar que não estamos
assim tão distanciados deste acontecimento. Óscar Ramirez quis procurar uma
vida possível para a sua família. Tal como muitos portugueses o fizeram durante
a ditadura. Nos anos sessenta o meu pai e o meu avô ajudavam pessoas a atravessar
a fronteira. Estiveram presos por isso. Mas depois de chegarem a Espanha os portugueses
ainda tinham de atravessar o terreno da ditadura franquista até França. O meu
pai e o meu avô não sabiam o que poderia acontecer às pessoas que deixavam em solo
espanhol, só tiveram conhecimento de alguns relatos que lhes chegaram anos
depois. Numa dessas travessias ia um irmão do meu pai e também um senhor mais
velho amigo da família. O senhor tinha problemas de saúde, creio que teve uma
pneumonia, e o seu estado piorava ao longo do percurso. O passador espanhol
queria deixá-lo para trás, o meu tio não o abandonou e felizmente os dois
sobreviveram. Podemos pensar que o perigo que os portugueses corriam era muito
menor comparado com quem tenta atravessar o Rio Grande. Mas isso é só uma
questão de acaso, porque nascemos neste território e não noutro. Mas até quando
é que vamos permitir que as pessoas tenham de correr perigo para sobreviver?
Até quando fará parte do nosso léxico palavras como fronteiras, refugiados ou
imigrantes ilegais?
Ainda ontem escrevi um texto
sobre refugiados, hoje não quero entrar na discussão económica-política que nos
mantém nesta situação. Queria apenas voltar à referência de um livro do Primo
Levi onde ele nos lembra que somos feitos de impurezas cósmicas. A vida é um
resultado de combinações de matéria insignificante mas por isso mesmo
incrivelmente mágica. É também de arranjos químicos que resulta o nosso cérebro,
é de reações bioquímicas que resultam as nossas emoções. Sabemos hoje que a nossa
espécie sobreviveu porque a manifestação dos genes altruístas foi maior em
relação aos genes egoístas. Somos resultado de migrações nómadas. E o que
fazemos com toda esta informação? Esquecemo-la e criamos fronteiras em cada
quintal.
O que mais me choca na imagem da
pequena Valeria e do seu pai não o trágico fim mas imaginar o que passaram
até chegar ali, imaginar os horrores da realidade à qual fugiam. Podia ser a
minha filha e o meu marido naquela imagem. Não são. Essa é a única certeza que tenho. Mas e o futuro? Que mundo
espera a minha filha? Se não mudarmos de rumo serão muitos mais aqueles que
terão de lutar pela sobrevivência em condições profundamente desiguais. Se não
mudarmos de rumo teremos de recordar muitos outros heróis como Óscar, Ávalos e
Valeria.