Tenho fascínio pelas teorias de evolução das espécies e
do universo. Não me assusta saber que somos resultado de poeiras cósmicas e que
vivemos num pequeno planeta rochoso que já sobreviveu à extinção dos outros
seres que o dominavam. Acho maravilhoso o aleatório e saber que o homo sapiens
só existe porque o altruísmo dos nossos ancestrais assim o permitiu.
Sei, por outro lado, que este cruzamento probabilístico nos
mantém muito vulneráveis. O que me leva a compreender a nossa existência como
uma improbabilidade mágica. A magia contrasta com a supremacia inventada e a
negação das nossas fragilidades.
No fim-de-semana passado, em Figueiró dos Vinhos, assisti
à luta pela sobrevivência de outra espécie. Perante a inevitabilidade do
incêndio o Eucalyptus Globulus mostrou ser muito mais apto às
condições que o meio nos apresentava. Uma espécie sem vontade própria usada como
fonte de rendimento e lucro rápido resistia ao fogo cruel que tirava a Vida a
dezenas e dezenas de pessoas.
Este é dos textos mais difíceis que
tento escrever. Tem tanto de difícil quanto de imperativo. Apesar da desordem
das memórias e do bloqueio emocional, escrevo-o porque as gentes daquelas
terras merecem ser lembradas. Gente humilde e simpática que nos recebia com
sorrisos. Pessoas que se espalhavam nas diversas colinas e vales que as
estradas estreitas unem.
Começámos o fim-de-semana com
promessas de perfeição. Na praia fluvial das Fragas de S. Simão encontrámos um
cenário idílico, como tantos outros que iriamos visitar. A densidade da água
fresca permitiu-nos saborear, serenamente deitados sobre ela, o instante. Olhávamos
um pequeno pedaço de céu que as duas grandes fragas apontavam. Por companhia a
música das quedas de água. Mas num breve instante uma espessa nuvem de fumo
negro apoderou-se do cenário. Do incêndio no concelho vizinho chegavam ventos
quentes que contaminavam a mistura gasosa que respirávamos. Sentimos o
sobressalto mas estávamos longe de imaginar as proporções da tragédia.
Um par de horas depois, em Penela
ouvimos as primeiras notícias. Conversámos com o dono do restaurante que, num
desabafo penoso, confirmou a informação que queríamos falsa. Recordou o inferno
que viveu em 2012, nos incêndios que assombraram o concelho de Penela. Falou
com revolta das histórias da apropriação de terras por parte das empresas de
celulose. Explicou-nos como é fácil convencer pequenos proprietários a plantar
eucaliptos, pois o lucro é grande e quase imediato. E que é ainda mais fácil
convencê-los a vender as suas pequenas terras à empresa que por ali se vai
instalando. Falou-nos do desrespeito à lei, por si só muito insuficiente, e de
uma ação movida por um autarca contra um dos anteriores governos por
desautorizar a deliberação da Câmara. Deliberação essa que desaprovava novas
plantações de eucalipto.
De regresso ao lugar onde íamos
pernoitar encontramos autênticos serviços de urgência improvisados. Muitas
ambulâncias, muitos profissionais de saúde, helicópteros do INEM. E feridos, muitos
feridos. Chegámos ao troço do IC8 cortado, as imensas luzes dos carros da
polícia, GNR e ambulâncias pareciam pequenos pirilampos comparados com o clarão
de fogo ali tão perto. Invertemos a marcha.
No lugar de Casal Ruivo ficámos de vigília.
Em poucas horas o clarão vermelho alastrou-se e fez uma tangente às árvores que
nos rodeavam. Mudou de direção porque o vento assim quis.Percebemos a proximidade do incêndio,
não por o vermos mas sim porque as luzes dos carros dos bombeiros e as
comunicações rádio se fizeram notar.
Num instante uma imensa nuvem de
fumo invadiu o céu e um bafo terrivelmente quente enfrentou-nos. Telefonámos à
proprietária do alojamento local que veio de imediato ter connosco. Vimos duas
bolas de fogo que se lançavam para uns km de distância. As árvores em chamas
livravam-se assim da casca que as afligia.
Fizemos companhia à senhora que nos
acompanhava a nós. O marido pegou no carro para se inteirar da proximidade do
perigo. Voltou muito rápido. Começou a regar a área circundante ao terreno. Depois
foi ajudar um amigo numa estrada próxima. Todos estes comportamentos são
normais e humanos. Ninguém pode dizer o contrário.
- Estas noites são intermináveis, disse
a nossa companheira. Finalmente a noite deu lugar a um amanhecer cinzento.
Nevava cinza contínua e abundantemente. No chão muitas folhas de eucalipto
negras e ainda inteiras.
Na despedida, um turista inglês
perguntou-nos como era possível todos os anos chegarem ao Reino Unido notícias
de incêndios em Portugal e ainda não estarmos preparados para esta tragédia.
Não pode haver árvores destas tão perto de habitações- dizia- isto é petróleo!
Quis dizer-lhe que a calamidade foi
possível por muitos mais fatores. Uma zona com população reduzida e dividida em
pequenos isolamentos. Difíceis acessos, poucos meios. Heróis que vão além da
exaustão para salvar vidas, aos quais se agradece em discursos demagógicos e se
nega um salário decente. Escolas que não nos preparam para reagir nestas
situações. Falta de investimento. Meios de comunicação social que não prestaram
informação aos que dela necessitavam urgentemente. Partidos políticos que só
apresentam propostas quando a sensibilidade eleitoral está ao rubro. Governos
velozes em assinar protocolos de milhões com grupos como a Altri e demasiado
lentos em mudar o paradigma das forças armadas. Um sistema económico mundial
que subjuga vidas a regras de deficits.
Um mundo onde o “sucesso” se mede por taxas de produto interno bruto e se
desrespeitam os conceitos mais simples para manter a vida no planeta.
Quis dizer-lhe… mas não era o
momento. Acompanhava uma família também inglesa que tinha perdido a casa no
incêndio. Há momentos que o respeito nos exige silêncio.
Iniciámos a viagem de regresso mas
antes parámos em Avelar. Catástrofe e negação pelas ruas. Pessoas socorridas em
pavilhões, muitas outras simplesmente à espera. Várias tentavam em vão contactar
familiares. Choro, tristeza e dor misturados com uma nuvem cinzenta que tapava
o sol.
Sentimo-nos imensamente impotentes!
Não sabíamos se deveríamos ficar para ajudar alguém ou se seríamos mais um
estorvo. A angústia mantém-se.
Mas agora, mais do que relatar os
acontecimentos, importa apelar à consciência. Este é um momento de coragem.
Coragem de assumir os erros do passado e agarrar o presente pelo futuro. Por
respeito a todas as vitimas, por respeito à Vida exigimos que os nossos
governantes deixem de obedecer às ameaças de grandes grupos económicos. A nossa
vida é precária, temos o dever, como espécie, de a proteger e de protegermos
todas as outras formas de vida. A Terra é um gigante ecossistema e a nossa
interação nele tem consequências enormes. Aproveitemos as vantagens genéticas
que temos para que essas consequências sejam positivas.
Solidariedade com as vítimas é
pouco!
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