Quando soube que a minha filha se
formava dentro de mim ganhei o hábito de lhe ler os meus livros em voz alta.
Continuei a fazê-lo enquanto nos acompanhávamos uma à outra nos seus primeiros
meses de vida extrauterina. Muitas vezes o seu pequeníssimo corpo adormecia no
meu peito embalado pela ressonância das minhas cordas vocais. Já não consigo
precisar quando mudei esse hábito ou simplesmente o abrandei. Fui começando a
ler outras histórias, os seus livros, que comunicam mais pelas imagens do que
pelo texto. Durante algum tempo o seu interesse não ia muito além de tentar
virar páginas até fechar rapidamente o livro e me impedir de concluir a
história. Agora já reconhece as personagens e indica-as com os seus pequenos
dedos.
Ontem, enquanto ela brincava no
seu labirinto de brinquedos e utensílios caseiros, comecei a ler em voz alta o
meu livro. Uma forma que por vezes encontro de estarmos juntas mas guardando
alguma autonomia no espaço dividido. Eis que ela se levanta, olha para o meu
livro monocromático e por isso monótono. Reclama numa verbalização que não descodifico
em palavras mas na qual encontro sentido. Vai buscar um dos seus livros e
senta-se no meu colo. Finda a primeira história repete o gesto e lemos o
segundo livro. Depois não querendo mais ouvir as histórias começa a abrir e
fechar os livros, apontando para as ilustrações e fingindo interagir com as
personagens.
Hoje completa 18 meses de
vida fora do meu corpo. E para que este episódio de demonstração de vontade,
interesse e procura de atenção ocorresse muita coisa mudou entretanto. Numa corrida
alucinante a transformação e o desenvolvimento manifestam-se todos os dias. E
se me orgulho ao vê-la crescer, se me emociono com as suas primeiras
caminhadas, também sinto um vazio criado pela sua autonomia. Ela está a provar-me
que é um ser independente, isso é maravilhoso e aterrador ao mesmo tempo.
Quando uma amiga veio conhecer a
Laura, disse-me “parabéns a ti porque tu também nasceste, uma mãe é um novo ser
vivo”. Não sei se sou uma nova pessoa, creio que não, mas sou certamente uma
pessoa muito diferente do que era há 18 meses. E sinto que o meu processo de
transformação é tão veloz quanto o desenvolvimento da minha filha.
Em primeiro lugar, as minhas
ideias, as minhas convicções deixaram de ser monocromáticas. Ser mãe é um papel
cheio de dúvidas, de incertezas. Por vezes parece que não vou ser capaz, que
não sei como chegar a determinado objetivo ou realizar determinada tarefa mas é
aí que me apercebo que este é o papel mais contraditório de todos. A
insegurança vive aliada a uma força atroz, de fêmea protetora, que se
transforma perante o menor indício de ameaça.
Sou hoje mais humilde e ao mesmo
tempo mais intolerante. Intolerante com as banalidades, com as falsas
tentativas de mudar algo, com a falta de empatia e sobretudo com a falta de
emoções. Se por um lado este papel me obriga a ser mais objetiva e racional,
para garantir a sobrevivência da minha filha, por outro mostra-me que a vida só
tem sentido por ser um puzzle de emoções onde o amor é a peça que se repete
mais vezes.
O processo metamórfico que
identifico em mim e o rápido desenvolvimento da minha filha é algo
absolutamente fascinante. Somos seres vivos, em constante transformação. O
mundo seria um lugar perfeito se respeitássemos isso. Tudo seria melhor se pudéssemos
abrir e fechar livros coloridos sempre que nos apetecesse.
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