No ano 2000 cheguei a Aveiro. Aos 18 anos tudo me
parecia estranho nesta cidade. E na verdade, até sair da universidade, nada
consegui desvendar deste local recortado por linhas de água. Depois percebi que
a vida universitária e a vida social da urbe não se conjugam. Mais tarde
comecei a entrosar-me nela, a perceber-lhe as marés e as modas que por cá vêm e
vão conduzidas pelo vento forte.
Aos poucos ela foi-me conquistando mas mantivemos
sempre uma relação instável. O cheiro da maresia, o reflexo da luz na água, os
passeios de bicicleta fazem-me adorar partilhar a minha vida com ela ao mesmo
tempo que a estagnação me aumenta o desejo de a deixar. Reconheço-lhe a
solidariedade e a superficialidade. Apresentou-me pessoas fantásticas que
ficarão para sempre no meu mundo, para onde quer que eu o leve, tal como me
mostrou que várias vidas orbitam em torno de aparências.
Em dia de feriado essa dicotomia bateu-me à porta com
força. Eu e o meu Companheiro pedalámos grande parte da cidade, atropelando as
folhas coloridas que enfeitam o chão. Fugimos ao trânsito dos moliceiros na
ria, ao ritmo lento dos tuk-tuk e à invasão dos turistas. Mergulhámos nas pequenas
ruas desta aldeia alargada e infiltrámo-nos nos parques vazios entre o vento e
as folhas que teimavam em cair como neve.
Quando cá cheguei estranhei a falta de relação entre
as pessoas e os espaços verdes. Chegada de uma cidade onde o parque ocupava grande
parte dos dias dos jovens quis criar relação com os parques daqui e encontrei a
minha solidão saudável neles.
Há algum tempo que não percorria um dos maiores
espaços verdes desconhecido por muitos, ou melhor dizendo, esquecido pela
maioria. Entrámos no espaço delimitado por prédios decrépitos plantados em duas
filas regulares. Por cá, esses prédios são conhecidos como os “comboios
amarelos”. Mas estes comboios pertencem a uma das muitas linhas férreas desativadas
há décadas. Nesse espaço melancólico esqueceram a força da natureza que ocupou
os caminhos pedonais com a vegetação selvagem. O encanto de criança que entra
num bosque foi quebrado pela indignação da desigualdade tão presente nesta
cidade (como em todo o mundo). Parece que alguns consideram que os que lá moram
são tão selvagens quanto a vegetação que ocupa o parque abandonado. A pobreza
é, para os acumuladores de votos, sinal de fracasso e há que penalizar esse
fracasso. Naquele lugar não se cuida do jardim porque os pobres não merecem ter
momentos de lazer e dignidade. Faz-se assim uma luta entre o belo e a
resistência. Nas regras da especulação imobiliária estes pobres ocupam um lugar
privilegiado. Enquanto eles resistirem em casas decrépitas sem horizonte que
possa ser observado, naquelas ruas não haverá lugar para parquímetros ou luzes
de natal que iluminem os passos dos turistas.
Permanece a beleza colorida da queda das folhas que não escolhe a quem agradar.
Permanece a beleza colorida da queda das folhas que não escolhe a quem agradar.