Num novo quarto escuro, o animal aninhado sobre si mesmo
uivava. Seus gritos ecoavam por toda a cidade que fingia não ouvir.
Os seus átomos de carbono, emaranhados num lençol de água,
vibravam ao ritmo acelerado pela dor. Queria desintegrar-se, as suas vísceras
soltavam-se pela pele rugosa, áspera. A dor corroía-lhe as entranhas e os ossos.
Gritava e esperneava porque o sonho que o acompanhara desde
sempre deixara de o visitar. Esse sonho dava lugar às longas horas de escuridão, ao silêncio perturbador que contrariava os seus gemidos. Na cabeça um eco
vazio carregava a lembrança da imagem que, até então, o acompanhara. O animal
sonhava a três dimensões com uma praia coberta de azul e dourado, onde o vento
afagava os seus sentidos, onde a maresia o embriagava. Sonhava com a extensão
dos seus membros a escavarem punhados de areia seca. Largava cada partícula
para que livremente dançasse com os suspiros do ar.
No seu refúgio começara a perder a capacidade de segurar a
areia. Esta fugia-lhe, escorregava pela extensão dos seus membros. Quanto mais
a tentava segurar mais ela se esvaía. As partículas deixaram de dançar e caíam abruptamente
sobre vários montinhos sobrepostos. Até que o sonho deixou de ser a três
dimensões, desapareceram os cheiros, o toque do vento, o som da rebentação e as
cores. Durou pouco tempo a fechar-se o cenário que era agora a preto e branco.
Desmontado o palco, o animal cada vez mais vivo recusava-se
a ser moribundo. Alimentava-se dos sentidos atropelados e das feridas abertas. Talvez
por isso se aninhasse perpetuando a dor física, gritava, uivava para expulsar não
sabia bem o quê.
Até que um dia a luz penetrou por uma pequena fresta. A
porta do quarto escuro abria-se lentamente. O animal do uivo passou ao gemido
enquanto se deixava cegar pela luz. Sentiu um corpo quente, silencioso. Tentou
espernear, pontapear-se mas aquele corpo segurou-o com todo o cuidado. Virou-o
de lado e num abraço aconchegado apazigou a dor alvoraçada. Assim permaneceram durante
horas, até que o corpo quente, silencioso abafou os gemidos. O animal ferido rendeu-se
àquela proteção. Finalmente adormeceu embalado pela doçura do afeto.
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