sábado, 10 de dezembro de 2016

Dicotomias



No ano 2000 cheguei a Aveiro. Aos 18 anos tudo me parecia estranho nesta cidade. E na verdade, até sair da universidade, nada consegui desvendar deste local recortado por linhas de água. Depois percebi que a vida universitária e a vida social da urbe não se conjugam. Mais tarde comecei a entrosar-me nela, a perceber-lhe as marés e as modas que por cá vêm e vão conduzidas pelo vento forte.

Aos poucos ela foi-me conquistando mas mantivemos sempre uma relação instável. O cheiro da maresia, o reflexo da luz na água, os passeios de bicicleta fazem-me adorar partilhar a minha vida com ela ao mesmo tempo que a estagnação me aumenta o desejo de a deixar. Reconheço-lhe a solidariedade e a superficialidade. Apresentou-me pessoas fantásticas que ficarão para sempre no meu mundo, para onde quer que eu o leve, tal como me mostrou que várias vidas orbitam em torno de aparências.

Em dia de feriado essa dicotomia bateu-me à porta com força. Eu e o meu Companheiro pedalámos grande parte da cidade, atropelando as folhas coloridas que enfeitam o chão. Fugimos ao trânsito dos moliceiros na ria, ao ritmo lento dos tuk-tuk e à invasão dos turistas. Mergulhámos nas pequenas ruas desta aldeia alargada e infiltrámo-nos nos parques vazios entre o vento e as folhas que teimavam em cair como neve.

Quando cá cheguei estranhei a falta de relação entre as pessoas e os espaços verdes. Chegada de uma cidade onde o parque ocupava grande parte dos dias dos jovens quis criar relação com os parques daqui e encontrei a minha solidão saudável neles.

Há algum tempo que não percorria um dos maiores espaços verdes desconhecido por muitos, ou melhor dizendo, esquecido pela maioria. Entrámos no espaço delimitado por prédios decrépitos plantados em duas filas regulares. Por cá, esses prédios são conhecidos como os “comboios amarelos”. Mas estes comboios pertencem a uma das muitas linhas férreas desativadas há décadas. Nesse espaço melancólico esqueceram a força da natureza que ocupou os caminhos pedonais com a vegetação selvagem. O encanto de criança que entra num bosque foi quebrado pela indignação da desigualdade tão presente nesta cidade (como em todo o mundo). Parece que alguns consideram que os que lá moram são tão selvagens quanto a vegetação que ocupa o parque abandonado. A pobreza é, para os acumuladores de votos, sinal de fracasso e há que penalizar esse fracasso. Naquele lugar não se cuida do jardim porque os pobres não merecem ter momentos de lazer e dignidade. Faz-se assim uma luta entre o belo e a resistência. Nas regras da especulação imobiliária estes pobres ocupam um lugar privilegiado. Enquanto eles resistirem em casas decrépitas sem horizonte que possa ser observado, naquelas ruas não haverá lugar para parquímetros ou luzes de natal que iluminem os passos dos turistas.
 Permanece a beleza colorida da queda das folhas que não escolhe a quem agradar.



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