segunda-feira, 18 de maio de 2020

Sentidos


A menina abriu os braços
Que o vento em asas transformou
E num instante imediato
Através de um sorriso atrevido
O seu primeiro voo iniciou

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Perspectivas


Ontem ouvi o Pedro Lamares na RTP2 recitar o poema VII do Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro. De imediato pensei no que mais caracteriza a vista da minha pequena varanda nas últimas semanas: um pátio de escola vazio, o verde das árvores que, ao renascerem nesta primavera, parecem contrariar a paragem das nossas vidas e um conjunto de cimento do prédio mais alto da cidade. Pela distância a que se encontra, consigo ver o topo dessa construção tão feia quanto sólida, é a Segurança Social que querem colocar em gabinetes e muitos papéis. A segurança social que me impõe este isolamento é outra, menos burocrática e mais solidária.
Pensei então que a pequenez que me invade durante estes dias pode ser fruto desta vista confinada. Não posso avistar o mar, nem as montanhas. No instante em que assim penso sinto-me mais pequena do que o meu metro e meio de altura.
Horas depois, um novo dia. A minha filha acorda devagar ao meu lado, ela gosta de saborear a preguiça matinal. Aconchegada a ela não penso em nada e de repente reparo na sua pequena mão sobre a minha. Acaricia-me vagarosamente com o mesmo vagar que os dias levam agora a passar. Aquele pormenor que vejo e sinto é tão grande quanto o rio da aldeia de Alberto Caeiro. Talvez a nossa grandeza não esteja somente no tamanho daquilo que avistamos mas também no quanto conseguimos observar.
Vem-me outra frase à memória: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. A citação da contracapa do livro Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago. Livro que muitos de nós com certeza já recordámos nos tempos de pandemia que vivemos.
Percebo que passo os meus dias de isolamento alternando entre atentar no que vejo e fechar propositadamente os olhos. Mais do que nunca o meu pensamento é uma dicotomia constante. Quando tudo começou pensei que este seria o tempo de o sistema reforçar os serviços públicos, de percebermos que somos uma espécie altruísta e como tal não faz sentido subjugar a classe trabalhadora aos caprichos de meia dúzia de predadores. Mas as notícias que nos chegam aumentam os contrastes e percebo que os predadores serão os primeiros a ser ajudados. Por outro lado, admiro os pequenos comerciantes, as pequenas empresas que bracejam apesar do cansaço para manterem os seus trabalhadores. Vejo um esforço sobrenatural destes pequenos (e verdadeiros) empreendedores para seguirem as recomendações das autoridades de saúde e ao mesmo tempo não se afundarem num fosso económico. Admiro os trabalhadores que não sabem se vão ter salário ao fim do mês, ou aqueles que ficaram sem ele, e mesmo assim querem acreditar que vai ficar tudo bem. Este é o momento de vermos e repararmos que o nosso mundo (e principalmente a realidade social de Portugal) não se divide entre “patrões” e empregados. Divide-se sim entre quem depende do esforço do seu trabalho para sobreviver dignamente e os que especulam com as nossas vidas. É o momento da unidade entre os primeiros se fazer notar. Logo de seguida penso que talvez não seja esta a solução que vamos encontrar, provavelmente depois da pandemia muitos dos pequenos “patrões” não vão resistir, podemos perder a proximidade do pequeno restaurante, das pessoas que todos os dias nos servem o café com um sorriso, o colorido do quiosque onde compramos o jornal. Muito provavelmente o desemprego vai aumentar exponencialmente tal como aconteceu com os infectados. As dúvidas são imensas e aterrorizam-nos.
Ontem uma amiga perguntava-me, verdadeiramente preocupada, como vai ficar a minha situação económica. Como trabalhadora independente ligada à educação, a partir do próximo mês não terei qualquer remuneração e não sei quanto tempo isto vai durar. Por outro lado, sei que quando voltar ao ativo vou ter outra vez diante de mim dezenas de olhares brilhantes e sedentos de conhecimento. Isso é suficiente para me manter esperançosa.
Sinto-me insignificante ao escrever sobre mim nestes tempos dolorosos, afinal não me pertence o sofrimento daqueles que se encontram doentes, dos seus familiares, dos que perdem alguém querido e não se podem despedir, não me pertence o desespero dos profissionais de saúde e estou muito longe dos corpos empilhados em câmaras frigoríficas. Sinto-me insignificante ao escrever sobre o que sinto e sobre o meu dia-a-dia privilegiado quando nada sei sobre os refugiados presos em campos cada vez mais perigosos, sobre as famílias divididas pela pandemia ou pela guerra. O pouco conhecimento que me chega apenas serve para aumentar as dúvidas sobre este novo mundo que corre e não sabemos onde vai desaguar. E aqui reside mais uma dicotomia: deambulo pelos pensamentos aparentemente insignificantes e contraditórios com a certeza que este é um exercício cívico que se impõe.
O mais importante é que cada um de nós encontre uma forma de se manter mentalmente saudável e, obviamente, a sanidade passa por não nos alienarmos da realidade ao mesmo tempo que observamos o que nos é possível através de cada uma das nossas janelas. É por isso que escrevo sobre o meu pensamento deambulante, afinal isto também é sobre mim, sobre todos nós. Cada um de nós tem agora um papel relevante a desempenhar para evitar a rutura do SNS e um papel, mais importante ainda, na reconstrução do novo mundo que se avizinha. Para que isso seja possível temos de nos manter conscientes independentemente de abrir ou fecharmos os olhos. Encontremos as nossas estratégias.
Temos todas as escolhas em aberto. Conforme somos capazes de nos manter isolados, num admirável respeito pelo o outro, pelo bem colectivo, também somos capazes de nos unir para dar prioridade à vida ao invés da usurpação da banca. A vista que teremos a partir da nossa aldeia vai depender da nossa capacidade de ação enquanto coletivo. Um sistema baseado em especulação e lucro fácil permitirá novas pandemias, matará muitos mais seres vivos por falta de recursos. A solidariedade que a nossa espécie precisa não é de uma invenção assente em linhas de crédito. O nosso altruísmo não se mede em spreads e o nosso esforço não tem uma taxa criada em folha de excel. Somos trabalhadores, somos seres humanos e enquanto seres vivos temos de reclamar um novo mundo com um futuro possível. Porque nós conseguimos ver e reparar. A nossa vista alcança muito mais do que a imagem virtual de qualquer predador, que não consegue mais do que se ver ao espelho.
Esta é a hora de escolher. Entre todas as dicotomias eu escolho a poesia.

sábado, 7 de março de 2020

Na primeira pessoa

A memória já não me permite descrever o espaço com exatidão mas não esqueço os cheiros que o calor intensificava, o odor da urina dos acamados e o suor das visitas amontoadas no corredor. De vez em quando passava uma enfermeira que levava consigo álcool etílico ou éter. Esse breve aroma anestesiava por instantes a indisposição que eu sentia. Talvez por essa razão viria a sentir-me bem por entre a maior parte dos cheiros de um laboratório químico.
O meu avô tinha dado entrada no hospital no dia anterior, foi-lhe diagnosticada uma leucemia fulminante, palavras que uma criança de doze anos não consegue descodificar. Mas quando penso nessa visita não é do meu avô que me recordo mas sim de uma maca tapada com um lençol branco. Por baixo, a silhueta inequívoca de um corpo. Um corpo morto que fazia sala na hora da visita. Seria esta uma lição de respeito pela vida ou simplesmente uma marca da indiferença perante a morte?
Nunca soube se o meu avô notou a presença daquela maca. Sei, apenas, que passados poucos dias ele implorou ao meu irmão (onze anos mais velho do que eu, o seu neto mais velho) que o tirasse daquele hospital. Não me deixes morrer aqui, disse-lhe. O meu irmão sempre ágil na ação obedeceu à vontade do nosso avô paterno e conseguiu levá-lo para casa.
Pautada por uma educação católica, não compreendi na época a situação, questionava-me se ele não devia ficar no hospital, ser cuidado para vencer uma doença invencível ou
simplesmente prolongar a sua estadia nas nossas vidas?!
Felizmente houve quem respeitasse o Homem que ali estava, consciente da sua vontade, e não deixasse que o egoísmo ou a demanda do espírito de sacrifício se sobrepusesse ao ato de amor e de respeito que lhe devíamos.
O meu avô veio para casa por um brevíssimo instante. E é nos mais breves momentos que
encontramos o que queremos eternizar. Eternizo a única vez que lhe dei a mão. Sentada ao seu lado no sofá, envergonhadamente aproximei a minha pequena mão do seu corpo
debilitado, ele agarrou-me os dedos e permanecemos em silêncio. Foi o gesto mais íntimo que partilhámos. No dia seguinte morreu rodeado de alguns netos e filhos.
 
Vinte e tal anos mais tarde recebi uma mensagem de uma grande amiga. Pedia a todos que compreendessem a sua decisão, não aguentava mais os tratamentos, as dores agonizantes, a certeza que percorria um difícil caminho cuja única saída era a morte. Quero paz, disse-nos. Desta vez, abandonados os princípios moralistas da religião, deixei que o egoísmo vencesse por instantes. Queria pedir-lhe para lutar, resistir, ficar connosco por mais tempo.
Guardo mais uma memória de um corredor, desta vez vazio, silencioso. Caminhei a medo até ao seu quarto. Abri a porta e vi um corpo magro, incrivelmente magro, parte de um rosto tapado que deixava adivinhar um sorriso. Os olhos pintados, mais verdes do que nunca, diziam-me que a sua vontade devia ser respeitada. Sei que iria mais além, se a lei o tivesse permitido, mas conseguiu um lugar onde a trataram com respeito. Onde lhe cuidavam do cabelo e lhe pintavam os olhos. Foi naquele olhar delineado que encontrei a maior dignidade de uma Vida.
Acabou por pedir para ser sedada até todos os seus tecidos entrarem em falência.
 
Eles (o meu avô e a M.A.) ensinaram-me, mais do que qualquer outra pessoa, que não é possível amar sem respeitar. Respeitar um ser humano é respeitar as suas decisões sobre a sua vida e a sua morte. A nossa morte pertence-nos como cada instante da nossa vida, não há coletivo ou lei que se possa sobrepor a isso. É na primeira pessoa, consciente da sua decisão, que as decisões mais importantes devem ser tomadas.

(artigo escrito para a Aveiro Mag)

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

O Sonho morreu


O Sonho morreu

Noticiam os jornais, anuncia a Rádio, projetam as TV’s

Corpos empilhados,

Incêndios descontrolados,

Psicopatas tomam o poder,

Livros são proibidos,

A Poesia é riscada,

Vírus mais fortes do que o Homem,

O gelo funde, os animais gritam.

Aviões bombardeiam

Cores de diferentes peles,

Religiões perseguem deuses de outros templos.



O Sonho morreu!

E eu choro-lhe a ausência compulsiva

E desesperadamente

Silencio as lágrimas

Aumentando o volume de uma música antiga.

Fecho os olhos

Lembro abraços e olhares,

Sinto-o!


O Sonho está aqui

Vivo.

Sinto-lhe a debilidade, enfraquecido

Anseia o meu oxigénio e o meu alimento.

Vou nutri-lo e vê-lo crescer

Mais saudável e forte do que outrora

E voltará a poesia

Para que os livros se libertem,

Cantarão os animais e as plantas

Para que os homens ouçam.

Teoria da Dor Relativa

  Pensei a dor como relativa S omada ou subtraída A aumentar ou diminuir Os valores inerciais iniciais. Ouvi falar de uma constante. Certa q...