segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Se isto é Humanismo

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Regressei recentemente às obras de Primo Levi. Finalmente reuni coragem para ler “Se Isto é um Homem” talvez a sua obra mais crua, onde em cada frase nos deparamos com um confronto entre humanismo e terror. A palavra Auschwitz surge em muitos títulos recentes, alguns que tentam até suavizar o horror, mas foi esta a grande obra que nos deu a conhecer a realidade do campo de extermínio nazi.

É difícil, podendo até ser perigoso, eleger uma única passagem da obra. Mas quero partilhar um parágrafo referente à última noite que Primo Levi e outros judeus passaram no campo fascista italiano de Fóssoli, antes de serem carregados nos vagões que os conduziram até à Polónia:

“Cada um despediu-se da vida da forma que lhe era mais própria. Alguns rezaram, outros beberam para além do normal, outros inebriaram-se com a última nefanda paixão. Mas as mães ficaram acordadas para preparar com amoroso cuidado a comida para a viagem, e lavaram os filhos, e fizeram as malas, e de madrugada os arames farpados estavam cheios de roupas de criança estendidas a secar ao vento; e não se esqueceram das fraldas, dos brinquedos, das almofadas e das cem pequenas coisas que elas bem conhecem, e das quais os filhos sempre precisam. Não fariam também o mesmo? Se amanhã esperassem ser mortos com o vosso filho, não lhe dariam hoje de comer?”

Talvez pela minha condição de mãe, e por sentir uma vida a crescer dentro de mim, me tenha sensibilizado particularmente com esta passagem. As obras de Primo Levi estão carregadas desta mestria: a capacidade de nos transportarem para o lugar do outro. E é impossível ler este livro sem nos revoltarmos com quem permitiu estes acontecimentos: os medíocres, de que nos falou Hanna Arendt, mas também aqueles que se calaram, aqueles que vendo emergir as forças fascistas não resistiram.

Um dia também nós seremos julgados pelas gerações futuras. Será julgado o silêncio a que nos habituámos e que consente a existência de campos de refugiados, o silêncio que permite a perseguição de estrangeiros e a sua morte, que permite o aumento das desigualdades, a perseguição das diferenças e a condenação dos pobres.

Faço aqui um paralelismo com a situação política atual. Não porque haja comparação em termos de dimensão mas porque o que nos define como humanidade está em causa agora como esteve no início do século XX.

Ontem (24/01/21) uma conhecida que votou em André Ventura perguntou-me porque é que a esquerda se preocupava tanto com o crescimento deste fenómeno. Alegou que os antidemocratas são os que se insurgem contra um voto nesta força destabilizadora. Mas não é esta uma preocupação de qualquer pessoa com valores humanistas? Se nos calarmos seremos um dia julgados por compactuarmos com o ódio. O mesmo ódio que está a alimentar forças idênticas por todo o mundo. Por outro lado, a democracia não se resume à liberdade de escolha nas urnas. O fenómeno Chega é uma ameaça à democracia por si só, não pela representação parlamentar que me parece que não vai crescer muito, mas pelas ideias que dissemina na sociedade. Não existe democracia sem respeito pelos direitos humanos. Em cada discurso de ódio que é legitimado há pelo menos uma vida que se sente ameaçada. E votar em André Ventura é um ato de legitimação do ódio. Não podemos permitir que uma família de etnia cigana, negros, estrangeiros, homossexuais, mulheres, pobres sintam a sua vida em risco cada vez que palavras de insulto são aplaudidas. Se perguntarmos aos cerca de 500 mil portugueses que votaram nele porque o fizeram, estou certa que não haverá nenhuma ideia comum, nem em termos económicos nem na tentativa de romper seriamente com o sistema. Há, sim, um sentimento comum, o ódio que é muitas vezes confundido com revolta.

Vejamos o que aconteceu na invasão ao Capitólio incitada por Trump. O que queria aquela multidão? Qual foi o verdadeiro fundamento de tudo aquilo? Não conseguimos encontrar nada em comum a não ser a disseminação do medo, tal como as imagens revoltantes de vários homens brancos a agredir uma mulher negra nos mostraram. Será esta violência e impunidade que queremos que cresça em todo o mundo? Será este o legado que queremos deixar para as gerações futuras?

Voltando à obra de Primo Levi. Com as envolventes descrições do autor, conseguimos facilmente perceber que aqueles homens e mulheres foram convertidos num espectro humano e desta forma toda a sociedade passou a olhá-los com repúdio ou indiferença. Quando somos confrontados com a debilidade humana é natural que surjam sentimentos primitivos, como repulsa, asco, medo e violência. Odiamos o que não queremos ser. É por isso muito fácil manipular os instintos que nos surgem quando somos confrontados com a pobreza extrema, as desigualdades e as minorias. A empatia só surge após uma reflexão consciente. É da manipulação dos sentimentos e emoções mais básicos que estas forças extremistas se alimentam.

Nós, eleitores, somos tratados como consumidores e chamados a votar por campanhas de marketing. O mesmo marketing que serve de base para os anúncios de automóveis na televisão. O neuromarketing debruça-se sobre estudos científicos que estudam o cérebro, o comportamento, as emoções para evoluir. Na grande maioria das campanhas não se debatem seriamente ideias, manipulam-se emoções. E quanto mais a ideologia perde terreno maior é a nossa vulnerabilidade. É urgente resgatar o debate ideológico e negar as campanhas sensacionalistas que pescam o voto rápido.

Temos pela frente um caminho árduo, que será agudizado por esta crise económica, ecológica e sanitária. É por isso que se torna urgente uma reconfiguração de políticas sociais na Europa que nos protejam. Tal como no pós-guerra o Estado-providência foi a resposta encontrada para reerguer a Europa não soviética, é chegado o momento de encontrar uma solução para que o rancor que coloca pobres contra pobres não nos vença.

Precisamos de recordar a História mundial e a do nosso país. Relembrar aos eleitores que agora aplaudem as perseguições, que eram eles os perseguidos de há poucas décadas. Os que roubavam laranjas por fome, os que arriscavam levar o gado a pastos proibidos, os que faziam contrabando para alimentar os filhos, os que fugiam para França na tentativa de deixar a miséria para trás.

É hora de escrevermos a História futura, uma realidade da qual os nossos filhos se orgulhem, onde ninguém é perseguido, onde todos tenham lugar.

Teoria da Dor Relativa

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