quinta-feira, 27 de junho de 2019

À pequena Valeria


Muitas pessoas se insurgiram contra a exposição da fotografia da família de El Salvador morta a tentar atravessar o rio Grande. Compreendo que não queiram ver a crueldade de um mundo onde se tratam vidas como peças de um grande jogo de monopólio. A obsessão pelo poder, quer seja para controlar um gangue em El Salvador quer seja para controlar um país como os EUA, é uma patologia cada vez mais mortífera e contaminante.

Compreendo que as pessoas classifiquem a fotografia como chocante, é um sinal que alguma empatia ainda resta dentro de nós. Eu não consigo deixar de olhar a imagem e imaginar o meu marido e a minha filha ali. Mas esta imagem é necessária, é crucial! Ela é crucial para nos avivar os genes da empatia, para nos recordar que isto acontece num mundo cada vez mais tecnológico, cada vez mais informado e devia ser suficiente para nos insurgirmos contra toda esta desumanização! Mas o problema é que esta imagem será sucedida de outra e isso basta para nos distrair e deixarmos a indignação de lado. Lembro por exemplo a fotografia da criança afogada no mediterrâneo mas não sou capaz de recordar o seu nome. Convivemos com a barbárie tal como nos rimos com os disparates dos loucos que nos governam. Achamos tudo isto normal! E o que podemos nós fazer, afinal?!

Podemos talvez recordar que não estamos assim tão distanciados deste acontecimento. Óscar Ramirez quis procurar uma vida possível para a sua família. Tal como muitos portugueses o fizeram durante a ditadura. Nos anos sessenta o meu pai e o meu avô ajudavam pessoas a atravessar a fronteira. Estiveram presos por isso. Mas depois de chegarem a Espanha os portugueses ainda tinham de atravessar o terreno da ditadura franquista até França. O meu pai e o meu avô não sabiam o que poderia acontecer às pessoas que deixavam em solo espanhol, só tiveram conhecimento de alguns relatos que lhes chegaram anos depois. Numa dessas travessias ia um irmão do meu pai e também um senhor mais velho amigo da família. O senhor tinha problemas de saúde, creio que teve uma pneumonia, e o seu estado piorava ao longo do percurso. O passador espanhol queria deixá-lo para trás, o meu tio não o abandonou e felizmente os dois sobreviveram. Podemos pensar que o perigo que os portugueses corriam era muito menor comparado com quem tenta atravessar o Rio Grande. Mas isso é só uma questão de acaso, porque nascemos neste território e não noutro. Mas até quando é que vamos permitir que as pessoas tenham de correr perigo para sobreviver? Até quando fará parte do nosso léxico palavras como fronteiras, refugiados ou imigrantes ilegais?

Ainda ontem escrevi um texto sobre refugiados, hoje não quero entrar na discussão económica-política que nos mantém nesta situação. Queria apenas voltar à referência de um livro do Primo Levi onde ele nos lembra que somos feitos de impurezas cósmicas. A vida é um resultado de combinações de matéria insignificante mas por isso mesmo incrivelmente mágica. É também de arranjos químicos que resulta o nosso cérebro, é de reações bioquímicas que resultam as nossas emoções. Sabemos hoje que a nossa espécie sobreviveu porque a manifestação dos genes altruístas foi maior em relação aos genes egoístas. Somos resultado de migrações nómadas. E o que fazemos com toda esta informação? Esquecemo-la e criamos fronteiras em cada quintal.

O que mais me choca na imagem da pequena Valeria e do seu pai não o trágico fim mas imaginar o que passaram até chegar ali, imaginar os horrores da realidade à qual fugiam. Podia ser a minha filha e o meu marido naquela imagem. Não são. Essa é a única certeza que tenho. Mas e o futuro? Que mundo espera a minha filha? Se não mudarmos de rumo serão muitos mais aqueles que terão de lutar pela sobrevivência em condições profundamente desiguais. Se não mudarmos de rumo teremos de recordar muitos outros heróis como Óscar, Ávalos e Valeria.

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