quarta-feira, 26 de junho de 2019

Poeira cósmica


Desde a minha pré-adolescência que não consigo estar sem a companhia de um livro. Às vezes por prazer, outras para me esconder do mundo ou simplesmente para aflorar as minhas emoções e, desta forma, não me esquecer que sou humana.
As estórias que fui escolhendo por companhia quase nunca me falharam e muitas delas fazem parte do meu complexo puzzle de existência.
Por vezes demoro-me demasiado tempo com a mesma estória. Estou a ler há meses o livro que me leva a escrever este texto, por exemplo. Não sou, portanto, um bom indicador para os rankings de leitura.
Ao que parece o tema refugiados entrou na ordem do dia e é por isso que escrevo sobre o livro “Os dez espelhos de Benjamin Zarco” de Richard Zimler. O livro conta-nos a história de dois primos, sobreviventes do Holocausto. Ou melhor, o livro envolve-nos na vida destes primos e dos seus familiares que não conseguem escapar à dolorosa pena da memória. Os horrores da perseguição continuaram vivos nos sobreviventes e nos seus descentes. A obra é de um humanismo deslumbrante e reforça a minha ideia de que é no amor, no respeito pelo outro e na solidariedade que reside a chave para a nossa salvação como espécie.
Por outro lado tornou-se uma leitura dolorosa porque não sei lidar com a realidade da nossa história passada e presente. Não sei lidar com a crueldade humana.
As estórias de Benjamim e Shelly falam-nos de dois refugiados que conseguiram chegar ao Canadá e aos EUA. Bem diferente das histórias dos refugiados que chegam agora ao continente europeu e dos que não deixamos entrar. Tudo isto depois de uma história tão recente, tão viva na memória de muitos.
Em Portugal o assunto entrou na ordem do dia (que me desculpe o Miguel) pelas razões erradas. Estamos todos muito solidários com “um dos nossos” que está a ser injustiçado. Não quero ser mal interpretada, eu também me solidarizo com a situação. Admiro o que o Miguel fez por muitas vidas e não preciso de mensagens de facebook ou esclarecimentos na AR para perceber que ele não é culpado de coisa alguma. Foi apanhado num processo kafkiano por um extremista que quer controlar as fronteiras italianas. Mas o centralismo desta questão está errado. Colocámos de parte a discussão sobre a origem de tudo isto. E alguns até condenam as verdadeiras vítimas.
A sociedade perde-se facilmente em discussões histéricas e estéreis. O poder instalado tem feito um excelente trabalho na arte da distração. Enquanto nos comovemos com uma qualquer imagem que rapidamente se volatiliza, somos perentórios em condenar outros seres humanos por serem diferentes na sua etnia, religião, cultura ou cor. Talvez seja essa a razão que nos distancia da pergunta que não devia calar: o que é que nós, europeus, estamos a fazer? Que história estamos a deixar às gerações futuras?
Criámos novos campos onde concentramos milhares de vidas. Isto para não falar de tantas outras que se perdem no mediterrâneo ou daquelas que escolhemos devolver para a miséria e para a guerra. O que justifica tudo isto? A resposta é simples: o modelo económico atual.
A indústria da guerra e os seus satélites gera aquilo que conhecemos como as grandes potências mundiais. Todos esses países lucram muito com a guerra. E esta deixou de ser uma questão de domínio de território para ser algo a manter. O poder não quer que as guerras acabem, quer que elas se perpetuem para gerar mais e mais lucro. Ao mesmo tempo geram-se as inseguranças e o medo, que proliferam devido à nossa cobardia. A extrema-direita fortalece-se. Justificam-se assim os investimentos militares e os novos campos de concentração.
As pessoas que chegam à Europa ou à Turquia geram lucro. O lucro ilícito, através dos esquemas fraudulentos de passar fronteiras e do tráfico de seres humanos. Mas geram também o lucro lícito derivado das leis criadas na UE que financiam os países para acumularem refugiados.
Voltando à literatura e à esperança que ainda tenho na Humanidade: Primo Levi no seu livro “O Sistema Periódico” conseguiu maravilhosamente relatar a sua vida de químico e também de judeu italiano perseguido e retido num campo de concentração. Cada capítulo tem um nome de um elemento químico e o último é dedicado ao carbono. Neste capítulo Primo Levi consegue poeticamente mostrar-nos como somos todos resultado de um acaso ou acidente de reações químicas. Os átomos de carbono que nos deram origem podiam simplesmente ter seguido outro ciclo. Mostra-nos também como somos insignificantes à escala cósmica: “(…) o destino único de cada carne (…) é uma sobra ridícula, uma “impureza” trinta vezes menos abundante do que o árgon de que ninguém se apercebe.” Ao mesmo tempo, Levi apresenta-nos a Vida como uma poesia química, bela e esplendidamente encadeada neste planeta.
Se um dia a Humanidade compreender a sua modesta composição e a complexidade de arranjos e desarranjos que deram origem à Vida certamente porá fim a todos horrores e atrocidades. Espero que histórias como as de Benjamim e Shelly passem a ser apenas memórias e não uma realidade presente.


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