Desde a minha pré-adolescência
que não consigo estar sem a companhia de um livro. Às vezes por prazer, outras
para me esconder do mundo ou simplesmente para aflorar as minhas emoções e,
desta forma, não me esquecer que sou humana.
As estórias que fui escolhendo
por companhia quase nunca me falharam e muitas delas fazem parte do meu
complexo puzzle de existência.
Por vezes demoro-me demasiado
tempo com a mesma estória. Estou a ler há meses o livro que me leva a escrever
este texto, por exemplo. Não sou, portanto, um bom indicador para os rankings
de leitura.
Ao que parece o tema refugiados entrou na ordem do dia e é por
isso que escrevo sobre o livro “Os dez espelhos de Benjamin Zarco” de Richard
Zimler. O livro conta-nos a história de dois primos, sobreviventes do Holocausto.
Ou melhor, o livro envolve-nos na vida destes primos e dos seus familiares que
não conseguem escapar à dolorosa pena da memória. Os horrores da perseguição continuaram
vivos nos sobreviventes e nos seus descentes. A obra é de um humanismo
deslumbrante e reforça a minha ideia de que é no amor, no respeito pelo outro e
na solidariedade que reside a chave para a nossa salvação como espécie.
Por outro lado tornou-se uma
leitura dolorosa porque não sei lidar com a realidade da nossa história passada
e presente. Não sei lidar com a crueldade humana.
As estórias de Benjamim e Shelly
falam-nos de dois refugiados que conseguiram chegar ao Canadá e aos EUA. Bem
diferente das histórias dos refugiados que chegam agora ao continente europeu e
dos que não deixamos entrar. Tudo isto depois de uma história tão recente, tão
viva na memória de muitos.
Em Portugal o assunto entrou na
ordem do dia (que me desculpe o Miguel) pelas razões erradas. Estamos todos
muito solidários com “um dos nossos” que está a ser injustiçado. Não quero ser
mal interpretada, eu também me solidarizo com a situação. Admiro o que o Miguel
fez por muitas vidas e não preciso de mensagens de facebook ou esclarecimentos
na AR para perceber que ele não é culpado de coisa alguma. Foi apanhado num
processo kafkiano por um extremista que quer controlar as fronteiras italianas.
Mas o centralismo desta questão está errado. Colocámos de parte a discussão
sobre a origem de tudo isto. E alguns até condenam as verdadeiras vítimas.
A sociedade perde-se facilmente
em discussões histéricas e estéreis. O poder instalado tem feito um excelente
trabalho na arte da distração. Enquanto nos comovemos com uma qualquer imagem que
rapidamente se volatiliza, somos perentórios em condenar outros seres humanos
por serem diferentes na sua etnia, religião, cultura ou cor. Talvez seja essa a
razão que nos distancia da pergunta que não devia calar: o que é que nós,
europeus, estamos a fazer? Que história estamos a deixar às gerações futuras?
Criámos novos campos onde
concentramos milhares de vidas. Isto para não falar de tantas outras que se
perdem no mediterrâneo ou daquelas que escolhemos devolver para a miséria e
para a guerra. O que justifica tudo isto? A resposta é simples: o modelo económico
atual.
A indústria da guerra e os seus
satélites gera aquilo que conhecemos como as grandes potências mundiais. Todos
esses países lucram muito com a guerra. E esta deixou de ser uma questão de domínio
de território para ser algo a manter. O poder não quer que as guerras acabem,
quer que elas se perpetuem para gerar mais e mais lucro. Ao mesmo tempo
geram-se as inseguranças e o medo, que proliferam devido à nossa cobardia. A extrema-direita
fortalece-se. Justificam-se assim os investimentos militares e os novos campos
de concentração.
As pessoas que chegam à Europa ou
à Turquia geram lucro. O lucro ilícito, através dos esquemas fraudulentos de
passar fronteiras e do tráfico de seres humanos. Mas geram também o lucro lícito
derivado das leis criadas na UE que financiam os países para acumularem
refugiados.
Voltando à literatura e à
esperança que ainda tenho na Humanidade: Primo Levi no seu livro “O Sistema Periódico”
conseguiu maravilhosamente relatar a sua vida de químico e também de judeu italiano
perseguido e retido num campo de concentração. Cada capítulo tem um nome de um
elemento químico e o último é dedicado ao carbono. Neste capítulo Primo Levi
consegue poeticamente mostrar-nos como somos todos resultado de um acaso ou
acidente de reações químicas. Os átomos de carbono que nos deram origem podiam
simplesmente ter seguido outro ciclo. Mostra-nos também como somos
insignificantes à escala cósmica: “(…) o destino único de cada carne (…) é uma
sobra ridícula, uma “impureza” trinta vezes menos abundante do que o árgon de
que ninguém se apercebe.” Ao mesmo tempo, Levi apresenta-nos a Vida como uma
poesia química, bela e esplendidamente encadeada neste planeta.
Se um dia a Humanidade compreender
a sua modesta composição e a complexidade de arranjos e desarranjos que deram
origem à Vida certamente porá fim a todos horrores e atrocidades. Espero que histórias
como as de Benjamim e Shelly passem a ser apenas memórias e não uma realidade
presente.
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