quarta-feira, 16 de março de 2016

Está para breve...



Encontrei na areia da praia o corpo de uma gaivota caído lateralmente. Estava rígido, porém ainda não seco. O olho virado para o céu parecia querer perpetuar a vida na matéria já morta. Morreu na areia branca da praia à qual pertenceu. À sua volta as várias conchas desalinhadas faziam lembrar tributos celtas ao corpo jazido. Fotografei-a para recordar a sua existência. Penso que é isso que fazemos com as pessoas que perdemos, eternizamo-las em recordações.


Nunca escrevi sobre Morte, à exceção dos devaneios da adolescência quando vemos o mundo através de um quarto fechado e escuro. Nunca o fiz pelo intimismo que o tema guarda em si. A primeira vez que senti a morte de alguém próximo tinha sete anos. Lembro-me das lágrimas que me correram no instante em que recebi a notícia mas o que mais me marcou foi perceber como a matéria orgânica, sem energia, fica gelada. Foi o primeiro significado que dei à morte: ausência total de temperatura.

Há quem diga que as crianças não sentem ou esquecem facilmente a morte de alguém querido. Mentira. As crianças sentem e guardam para sempre as questões, a dor, a incompreensão do acontecimento. Dos meus avós guardo estas lembranças que alternam com as recordações doces que me deixaram. Não suporto a frase feita “ é a ordem natural das coisas” como se a dor de perdermos alguém se remetesse apenas à idade. A dor que sentimos perante a morte é egoísta, nada tem a ver com o quanto aquela pessoa teria para viver mas sim a falta que ela nos fará. Não há calibre para a dor, muito menos para a dor de perder alguém.


A dor da Morte não tem calibre mas tem uma escala de pertença. Percebi isso quando acompanhei amigos na perda dos seus pais. Senti isso quando o meu companheiro perdeu a mãe. A minha dor egoísta de não poder passar mais tempo com aquela mulher especial não tinha significado perante a dor imensa do filho. A dor da morte da mãe pertencia mais a ele do que a mim. Eu apenas tinha a impotência que tentava disfarçar com o abraço ou o aperto da sua mão trémula… 


Nunca escrevi sobre este tema. Hoje tenho necessidade de o fazer. A morte é o que nos mostra como somos frágeis. A morte de outros é o que nos mostra o quanto podemos ser insignificantes, impotentes. Mesmo que o fim esteja a acontecer gradualmente aos nossos olhos é algo que nos recusamos a aceitar e perspetivamos sempre para um futuro longínquo. Por vezes, invejo as crenças daqueles que defendem que há vida para além do metabolismo que confere energia (vida) à matéria.


Hoje sinto-me terrivelmente impotente. Recebi uma mensagem de uma Mulher que admiro muito que me dizia “Está para breve…”. Fala de uma das pessoas mais importantes da vida dela. Aquela mensagem consternou-me. Sei que o seu amor se divide entre a vontade de terminarem as penas naquele corpo jovem e a tristeza de não voltar a ter o seu abraço. Falo-vos de um desabafo de uma Mulher de luta, que muitas vezes chamo de “minha guerreira”. Esta mulher já enfrentou desilusões de amores, amizades (como todos nós) e muito mais. Deparou-se com a doença cruel que lhe levou o pai, sendo ela muito jovem. A mesma crueldade que lhe quer tirar a irmã, a mesma doença dolorosa que ela venceu. Batalha todos os dias pela sua verdade. É uma mulher justa e uma mulher da justiça. Seguiu a carreira que lhe permite veicular a sua essência: a luta pela justiça para si e para os outros. Por vezes parece ter superpoderes, vai buscar a força ao fundo de um baú muito rico. Sei que agora se sente frágil, incapaz. Gostava de lhe dizer que é muito mais capaz do que qualquer outra pessoa nesta situação. Está lá, no meio do oceano, longe do seu espaço para dar todo o amor à irmã.  Incapazes somos nós, os amigos, que não lhe conseguimos atenuar a dor. Porque por mais que estejamos a sofrer com ela esta dor é só sua. É parte da sua genética, do seu sangue, da sua vida que se vai.

Sei que ela vai pensar que devia ou podia ter feito mais. Não, eu sei que ela fez tudo e mais ainda. Está a viver um momento atroz, vai rebentar de mágoa quando sentir o espaço vazio. Mas ela é “guerreira” de carne e coração. Vai continuar, vai enriquecer o seu baú com as recordações dos momentos de partilha com a irmã. Vai contar as viagens, as brincadeiras, as traquinices que elas partilharam com um sorriso no olhar. Idêntico ao que mostra quando conta as histórias do pai. Assim vai eternizar a existência da irmã. Eu, como amiga, vou querer ouvi-la, talvez por um ato egoísta de minimizar a minha impotência e insignificância.


2 comentários:

  1. Muito bonito... não sei escrever assim.

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  2. Olá! Muito obrigada pelo comentário. Ninguém escreve da mesma forma. Mas certamente escreves muito bem. Tudo sai bem desde que seja honestamente sentido.
    Abraço,
    Odete.

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